ANO 9 Edição 99 - Dezembro 2020 INÍCIO contactos

Carlos Matos Gomes


Cabo Delgado - Moçambique    

A violência em Cabo Delgado é simultaneamente simples de perceber e propositadamente difícil de explicar. A causa simples é a luta pelo poder, enquanto domínio que permite o acesso de um dado grupo às riquezas. Neste sentido, a causa da violência em Cabo Delgado é idêntica à da violência que conduziu às invasões do Iraque, da Síria e à destruição da Líbia. A única diferença é que a região onde se encontram as riquezas – petróleo, gás, e também pedras semipreciosas – é habitada por uma sociedade com poucos ou nenhuns meios de defesa (os macondes) e faz parte de um Estado fraco, incapaz de garantir a ordem interna e de se defender de ataques externos. Cabo Delgado é um alvo mole e barato para os assaltantes.

É deliberada a complexidade das diversas explicações para a violência em Cabo Delgado, classificada como «conflito» - não há qualquer conflito, há imposição de um poder pelo terror. A complexidade destina-se a esconder os responsáveis perante a opinião pública e a confundi-la. Os argumentos que salientam tensões etnolinguísticas, particularmente entre povos muçulmanos da costa, macuas, e macondes (animistas/cristãos), desigualdades no acesso a benefícios do Estado por parte dos macondes, favorecidos pelo estatuto dos antigos combatentes, representação política, assimetrias, lançadas para a opinião pública como estando na origem do jhiadismo e das suas práticas de terrorismo religioso são meras falácias, engodos e enganos.

É curioso reparar que o jhiadismo, a guerra santa, surge apenas com grande vigor em zonas ricas em recursos naturais. Os fiéis do profeta mais radicais e tementes a Alá concentram-se nas zonas de petróleo e gás! O profeta move-se a petróleo! Também não é uma santa coincidência do Maomé que a violência ocorra na margem direita do Rovuma, onde vive um terço dos macondes e há recursos naturais e ausência de Estado, e não na margem esquerda, na Tanzânia! Mais curioso ainda, o fervor jhiadista surge sempre associado à facção sunita do islamismo e à sua corrente mais radical, o wabismo totalitário, dominante a Arábia Saudita, grande aliado do Ocidente!

Quando alguém refere o jhiadismo como um movimento religioso está a mistificar. Uns fazem-no por ignorância, outros por má-fé. Não existem guerras santas, nem religiosas. As cruzadas não foram uma guerra religiosa, nem a Inquisição, nem a Contra-Reforma, nem a conversão dos índios nas Américas. Todas foram guerras por poder e riqueza, tal como a atual guerra santa islâmica. Em Cabo Delgado, como na Síria, no Iraque, na Líbia ou na Nigéria, jhiad é uma outra designação para petróleo, armas e dólares!

Em 1985 estive em Moçambique a convite do presidente Samora Machel, através do grande humanista e anticolonialista que foi Aquino de Bragança. Numa das conversas, o presidente Machel referiu, para minha surpresa, o desejo de ter mais padres católicos para abrirem missões na zona de Nampula até à fronteira do Rovuma, para contrariar, como claramente afirmou, a «invasão islâmica» desenvolvida com o apoio e o financiamento da Arábia Saudita. Era o seu inimigo. Continua a ser o inimigo de Moçambique.

A violência em Cabo Delgado é, como as outras jhiad, uma ação deliberada conduzida pela Arábia Saudita, tendo por detrás dos “príncipes sauditas” as grandes companhias de petróleo americanas e europeias e os seus governos. O jhiadismo é uma empresa multinacional que conjuga os negócios do petróleo, que promovem guerras, que alimentam os complexos militar-industrial das grandes potências que, no final, pagam as eleições dos governantes mais ou menos democratas. Entre as ligações mais conhecidas do jhiadismo saudita com santo mercado ocidental estão as de Juan Carlos, de Espanha e Sarkozy, de França e as de Trump, com maior negócio. A América grande de novo.

Cabo Delgado e os macondes estão à mercê destas forças reais. O jhiadismo é uma cortina de fumo.

Tendo a guerra santa, a jhiad, as petrolíferas e os complexos militares por detrás, é certo e seguro que a violência continuará em Cabo Delgado até esses poderes se assenhorearem das riquezas que jazem debaixo dos pés descalços dos macondes. O resto são mentiras piedosas e negócios milionários.

As pessoas de boa vontade devem contribuir para minorar o sofrimento do extraordinário povo maconde, orgulhoso, com uma cultura riquíssima, mas os macondes de Moçambique estão condenados, não pelos sicários do Daesh ou do Boko Haram, mas pelas bolsas de valores, pelo preço do barril de crude, pelos haréns dos petroditadores, pelos fabricantes de armas e pelos votos dos democratas. Tal como os iraquianos, os líbios, os sírios, os nigerianos, mas também os angolanos e os venezuelanos, os macondes estão sujeitos à maldição do petróleo e à ambição sem freio nem escrúpulos dos grandes predadores mundiais. A explicação para a violência em Cabo Delgado é simples. Difícil é, como diz um provérbio africano, tirar o osso da boca do cão.    

 

 

Carlos Matos Gomes é coronel do Exército, reformado. Nasceu a 24 de julho de 1946, em Vila Nova da Barquinha. Foi oficial do Exército, tendo cumprido comissões em Angola, Moçambique e Guiné. Algumas das suas obras foram adaptadas ao cinema e à televisão, e colaborou com Maria de Medeiros no argumento do filme Capitães de Abril. É investigador de História Contemporânea de Portugal. Publicou, como Carlos de Matos Gomes e em coautoria com Aniceto Afonso, os livros Guerra ColonialOs Anos da Guerra Colonial e Portugal e a Grande Guerra. No catálogo da Porto Editora figuram os romances, escritos sob o pseudónimo Carlos Vale Ferraz, A Última Viúva de África (2017), Prémio Literário Fernando Namora/2018, e Nó Cego (reeditado em 2018), uma obra de referência obrigatória na ficção portuguesa sobre a guerra colonial.

TOP ∧
InComunidade

Revista InComunidade, Edição de Dezembro de 2020


FICHA TÉCNICA


Edição e propriedade: 515 - Cooperativa Cultural, ISSN 2182-7486


Rua Júlio Dinis número 947, 6º Dto. 4050-327 Porto – Portugal


Redacção: Rua Júlio Dinis, 947 – 6º Dto. 4050-327 Porto - Portugal

Email: geral@incomunidade.com


Director: Henrique Dória       Director-adjunto: Jorge Vicente


Revisão de textos: Filomena Barata e Alice Macedo Campos

Conselho Editorial:

Henrique Dória, Cecília Barreira, Clara Pimenta do Vale, Filomena Barata, Hirondina Joshua, Jorge Vicente, Loreley Haddad de Andrade, Maria Estela Guedes, Myrian Naves


Colaboradores de Dezembro de 2020:

Henrique Dória, Álvaro Alves de Faria, Adán Echeverria, Adel José Silva, Antônio Torres, Artur Alonso Novelhe, Beatriz Aquino, Caio Junqueira Maciel, Carlos Eduardo Matos, Carlos Matos Gomes, Cecília Barreira, Cruzeiro Seixas, Eurico Gonçalves ; Dalila d’Alte Rodrigues, Décio Torres Cruz, Dalila d’Alte Rodrigues, Denise Emmer, Edson Cruz, Elisa Scarpa, Federico Rivero Scarani, Fernando Andrade, Flávio Sant’Anna Xavier, Grupo Estilingues, Helena Barbagelata, Henrique Dória, Hermínio Prates, Joaquim Maria Botelho, Leila Míccolis, Lindevania Martins, Luís Filipe Sarmento, Mário Baggio, Mônica de Aquino, Marcelo Frota, Marco Antonio, Marcos Pamplona ; Helena Barbagelata, ilustração, Marinho Lopes, Myrian Naves, Nilma Lacerda, Paulo Martins, Ricardo Ramos Filho, Rogelio Pizzi ; Rolando Revagliatti, entrevista, Waldo Contreras López, Wil Prado, William Vanders, Wilson Alves-Bezerra


Foto de capa:

SALVADOR DALÍ, 'La persistencia de la memoria', 1931.


Paginação:

Nuno Baptista


Os artigos de opinião e correio de leitor assinados e difundidos neste órgão de comunicação social são da inteira responsabilidade dos seus autores,

não cabendo qualquer tipo de responsabilidade à direcção e à administração desta publicação.

2014 INCOMUNIDADE | LOGO BY ANXO PASTOR