ANO 9 Edição 99 - Dezembro 2020 INÍCIO contactos

Adel José Silva


Resenha literária: Ele está no meio de nós: o romance na cena da epifania    

 

Para quem leu O Marceneiro, a Última tentativa de Cristo, do provocador Silas Corrêa Leite, perceberá um fio condutor trançando uma trilogia esperada na obra Ele está no meio de Nós. Há quem diga, que essas duas últimas, somada ao fascinante Tibete, De Quando Você não Quiser mais ser Gente, realizam o circuito perfeito, maduro de uma trilogia. É certo, contudo, que a obra ocupa o espaço do primeiro volume, ternário, que pulsa.

O existencialismo mítico, radical e provocativo, retornado em O marceneiro, já vigorava, nos fornecendo um painel capaz de cativar o leitor. Nesta obra, o narrador entregando-nos Saulo, ou Paulo, protagonista do Romance. Aqui, temos um declarado paralelo entre o protagonista e Paulo de Tarso, o reformulador, e reconhecido por alguns, como o inventor do Cristianismo, conhecido por nós, hoje.

A vida do protagonista Saulo, assim como seu duplo histórico, é marcada pela Epifania, o encontro com o fabuloso, o indizível, a revelação.

Silas Corrêa leite constrói no cerne do caos da existência sua poético-prosa-militante. Com isso, por militante, não se quer dizer panfletário, em nenhuma hipótese. Silas é, antes de qualquer sílaba, busca pela qualificação da leitura. Exige uma disposição ao leitor atento.

É neste ponto, que a obra de Silas se torna profundamente atual e contemporânea. Se por um lado, encontraremos em seus escritos rastro de uma dívida ao Modernismo Nacional da primeira metade do século XX. Afinal, ler Silas, é reencontrar, em certa medida, a antropofagia de Oswald, tanto quanto, reminiscências do experimentalismo de Rosa e Lispector, ou mesmo de autores formadores do início do nosso pré-modernismo, sobre quem Sevcenko, diz “É esse conflito essencial que aflora na sociedade e nas consciências neste momento, e que os principais autores do período buscarão resolver, para o bem ou para o mal, nas suas obras”.  É essa ideia, que varreu o século XX, como também lembrou Badiou: ”O século XX foi obcecado pela ideia de mudar o homem”, que ainda vinga na obra de Silas.  Por   outro lado, encontra-se um autor nascido no caldo prolixo e complexo do ciberespaço, do lócus-virtual, da contemporaneidade e dos jogos refinados de um mundo que se estrutura em concepções de pós-verdade, fincado nas trincheiras, ainda obscuras, do multiculturalismo, do politicamente correto e seus contrapesos, cujo caldo fervente, formará a hegemonia pensante do século XXI.

É diante desse panorama, pós-moderno e culturalmente profícuo, complexo e arrojadamente polarizado, que surge a voz de Silas Correa Leite, estabelecendo seu dialogismo radical. É isso, a obra de Silas radicaliza no diálogo. É um autor, primeiro, em busca de u leitor.

Esse diálogo com o leitor, de certa forma, inscreve o leitor em uma campanha, quase como se a obra compartilhasse um sentido existencial que se torna escola, na qual o leitor milita, conspirando e costurando a trama em paralelo ao autor, e isso Silas  o faz me principalmente em Campos de Trigo Com Corvos, (2008), obra de contos finalista do Prêmio Telecom/Ficções, Portugal, ou a que tem sido aclamado como sua obra-prima, Goto, Romance, A lenda do Reino do Barqueiro Noturno do Rio de Itararé, (2014-Clube De Autores). Cito como símbolo metonímico, a obra poética, nervosa, tanto quanto, sua prosa mais cativante, nas quais, esse traço vigora com desempenho exuberante.

Na obra, Ele está no Meio de Nós, percebe-se movimento diferenciado em relação a essas duas citadas. Se em Goto e Campo de Trigo, temos um movimento intimista de um pesquisador, no qual o exercício da linguagem experimental é farto e delicado, nessa obra, tanto quando em O Marceneiro, temos um contraponto, no qual a comunicabilidade radical, é a tônica. Não que com isso, não haja jogos rítmicos, ou brinquedos de enredo que busque o experimento nessas últimas obras. Claro que há.

Vejamos um exemplo, o foco narrativo em Ele está no meio de Nós, que ora se organiza na 3.ª pessoa, ora se revela, principalmente, no momento da Epifania, na 1.ª pessoa, gerando dialética, que produz mover da intimidade, ou subjetividade da personagem, para a exterioridade do corpo visto a distância. As condições provocadas no leitor podem variar de acordo com a recepção leitora. O leitor escolherá o efeito sanfona, dentro-dentro fora, ou o efeito bipolar, estanque, fora agora, dentro agora, separadamente. De forma, ainda que sutil, temos uma aqui, variação do estilo experimental do autor.

De toda sorte, o leitor, quer seja ele um exigente exegeta, ou um diletante e despretensioso alquimista do deleite, encontrará em Ele está no meio de nós um thriller que mistura a condição mística, o sobrenatural, o amor e a aventura. Em um jogo no qual a peripécia nutre em ritmo a descoberta de si, a busca espiritual no seio das cidades paulistas.

Uma vez que os cenários se alternam, ora Itararé, berço poético e símbolo mítico da cidade sagrada, escolhida como a Xangri-lá pelo autor, ora o centro, a Avenida Paulista, símbolo da Babilônia, no qual todo desfecho se dá, construindo assim, uma narrativa sobre o viver radical, um viver que não tolera os mornos, os frios, que passam pela vida em muros calhordas, que muito mais que separar e restringir, amargam a vida, tornando-a insossa e desprendendo-a de sentidos.

É contra o niilismo barato, o carregar torturas de culpa sem parteira, do barateamento do tempo-existência, em troca da opção pelo ódio, pelo tédio, pelo ressentimento, que Silas apresenta seu Romance como capaz de abrir um fluxo narrativo que nos torne aliados do protagonista, experimentando com ele a Epifania que nos é devida.

Referências
Badiou, Alain, O século, -Aparecida, SP:  Ideias e Letras ,2007. P.21

Sevcenko, Nicolau, Literatura como Missão, tensões sociais e criação da cultura na Primeira República. Brasiliense, R.J.1985. p.35

SILAS, Corre leite. In Porta-Lapsos, Poemas, Editora All-Print, Ano 2005. SP.
_______________04 Os Picaretas do Brasil Real, Poema Social, Série Cantigas de Escárnio e Maldizer, Editora Thesaurus, Brasília-DF, Ano 2006

______________“Campo de Trigo Com Corvos”, Contos, Editora Design, Santa Catarina, Ano 2008, obra escolhida para finalista do Prêmio Telecom./Ficções, Portugal.

_______________GOTO, Romance — A Lenda do Mundo do Barqueiro Noturno do Rio Itararé in http://brasil.indymedia.org/pt/blue/2013/09/524832.shtml GOTO Romance, Editora Clube dos Autores, Compre pela Web, é Seguro O livro GOTO de Silas Correa

________________Ele Está no Meio de Nós, Silas Corrêa Leia-Curitiba Kotter. Editoraial.2018.

________________ O Marceneiro, A Última Tentativa de Cristo, Editora Viseu, 2019

 

 

ADEL José Silva, professor, blogueiro, agitador lítero-cultural, mestre em literatura pela USP-Universidade de São Paulo

TOP ∧
InComunidade

Revista InComunidade, Edição de Dezembro de 2020


FICHA TÉCNICA


Edição e propriedade: 515 - Cooperativa Cultural, ISSN 2182-7486


Rua Júlio Dinis número 947, 6º Dto. 4050-327 Porto – Portugal


Redacção: Rua Júlio Dinis, 947 – 6º Dto. 4050-327 Porto - Portugal

Email: geral@incomunidade.com


Director: Henrique Dória       Director-adjunto: Jorge Vicente


Revisão de textos: Filomena Barata e Alice Macedo Campos

Conselho Editorial:

Henrique Dória, Cecília Barreira, Clara Pimenta do Vale, Filomena Barata, Hirondina Joshua, Jorge Vicente, Loreley Haddad de Andrade, Maria Estela Guedes, Myrian Naves


Colaboradores de Dezembro de 2020:

Henrique Dória, Álvaro Alves de Faria, Adán Echeverria, Adel José Silva, Antônio Torres, Artur Alonso Novelhe, Beatriz Aquino, Caio Junqueira Maciel, Carlos Eduardo Matos, Carlos Matos Gomes, Cecília Barreira, Cruzeiro Seixas, Eurico Gonçalves ; Dalila d’Alte Rodrigues, Décio Torres Cruz, Dalila d’Alte Rodrigues, Denise Emmer, Edson Cruz, Elisa Scarpa, Federico Rivero Scarani, Fernando Andrade, Flávio Sant’Anna Xavier, Grupo Estilingues, Helena Barbagelata, Henrique Dória, Hermínio Prates, Joaquim Maria Botelho, Leila Míccolis, Lindevania Martins, Luís Filipe Sarmento, Mário Baggio, Mônica de Aquino, Marcelo Frota, Marco Antonio, Marcos Pamplona ; Helena Barbagelata, ilustração, Marinho Lopes, Myrian Naves, Nilma Lacerda, Paulo Martins, Ricardo Ramos Filho, Rogelio Pizzi ; Rolando Revagliatti, entrevista, Waldo Contreras López, Wil Prado, William Vanders, Wilson Alves-Bezerra


Foto de capa:

SALVADOR DALÍ, 'La persistencia de la memoria', 1931.


Paginação:

Nuno Baptista


Os artigos de opinião e correio de leitor assinados e difundidos neste órgão de comunicação social são da inteira responsabilidade dos seus autores,

não cabendo qualquer tipo de responsabilidade à direcção e à administração desta publicação.

2014 INCOMUNIDADE | LOGO BY ANXO PASTOR