ANO 9 Edição 99 - Dezembro 2020 INÍCIO contactos

Caio Junqueira Maciel


De como um poeta entrou em minha vida    

 

Para falar da poesia de Dantas Mota, itinerário incontornável é passar pelo soneto escrito por Carlos Drummond de Andrade, publicado em Discurso da primavera e outras sombras, em 1974, no ano em que faleceu, aos 60 anos o poeta de Aiuruoca:

DANTAS MOTTA, profeta e voz de rio
no curso do Oriente ou de Aiuruoca,
mineiramente amarga e transparente
para quem sabe ouvir, e que convoca

a poesia onde quer que ela, pulsando,
seja signo de amor ou de protesto,
Dantas Motta, raiz de longo alcance,
milho de ouro em paiol, bíblica festa

de fraterno sentir e revelar
as doídas verdades esquecidas,
as candeias, os lumes abafados,

o soluço travado na garganta
e o mais que se pressente mas oculta-se
nos subúrbios longínquos da esperança.

 

Por outro lado, posso começar esta minha confissão sobre meu encontro com a poesia de Dantas Mota citando Murilo Mendes: “A poesia sopra onde quer”. Pois esse poeta mineiro surgiu para mim num inesperado lugar: no cemitério de Cruzília, minha terra natal, no enterro de meu avô, Cornélio Maciel. Lá estava o poeta de Aiuruoca, à beira do túmulo, elogiando um inimigo político: pois Dantas era udenista e meu avô, antigo chefe do PSD naquela região do Sul de Minas. Dantas Mota, então, por várias vezes, dizia ter inveja daquele morto que punha toda uma cidade em prantos, e foi discorrendo sobre as qualidades do patriarca dos Maciéis. Eu contava então com 16 anos, já tinha ouvido falar do poeta mas nunca havia lido seus versos. Depois, folheando as Elegias do país das gerais, na edição da José Olympio, de 1961, num trecho de “A fixação dos condes no espaço em questão”, deparei-me com os seguintes versos:
“Foi um grande homem, dirá alguém. Quando
Morreu, o comércio cerrou as portas. Até o
pessoal da política contrária acompanhou seu
enterro.

E, na sala, o retrato se agiganta,
E com ele
A saudade de um tempo menos cruel.”

Tais versos, publicados pela primeira vez em 1946, já mostravam uma realidade que vi ocorrer naquele março de 1968, na morte de meu avô. A partir daí comecei a ler a poesia de Dantas Mota, poesia difícil, complexa, às vezes chegando mesmo a ser hermética, com algo de surrealismo, mas nunca se comportando com aquele formalismo asséptico, como, de modo geral, é vista a geração de 45, segundo informam manuais didáticos sobre o terceiro momento do Modernismo brasileiro. O poema de Dantas que era mais citado na época (e ainda hoje ainda o é, pelos poucos que falam desse poeta mineiro), é o “Noturno de Belo Horizonte”:
“O chope não me traz o desejado esquecimento
Os insetos morrem de encontro à lâmpada
Ou se acoitam no sofrimento destas rosas secas.
Vem do Montanhês este ar de farra oculta,
Bem mineira, e um trombone, atravessando
A pensão “Wankie”, próxima à Empresa Funerária,
Acorda os mortos desolados na Rua Varginha.
Uma lua muito calma desce do Rola-Moça
E se deita, magoada, sobre os jardins da Praça,
O telhado do Mercado Novo, o bairro da Lagoinha.
Tísicos boiam que nem defuntos na solidão
Dos Guaicurus. O próprio noturno de Belo Horizonte
Tem lá suas virtudes: nas pensões mais imorais
Há sempre um Cristo manso falando à Samaritana.
As mulheres do Norte de Minas, uma de Guanhães,
Duas de Grão-Mogol e três da cidade do Serro
Mandam ao ar esta canção intolerável
Que aborrece até mesmo o poeta Evágrio.
Pobre Evágrio, perdido na estação de Austin,
Triste e duro como uma garrafa sobre a mesa.
Entanto nada indica haja tiros, facadas, brigas
De amantes na Rua São Paulo, calma e sem epístolas.
O Arrudas desce tranquilo, grosso e pesado,
Carregando cervejas, fetos guardados, rótulos de
Farmácia, águas tristes refletindo estrelas.
Tudo, ao depois, continuará irremediavelmente
Como no princípio. Somente, ao longe,
Na solidão de um poste, num fim de rua,
O vento agita o capote do guarda.”

Um poema como esse fala de coisas próximas da gente: toponímia mineira, ruas de Belo Horizonte, o Arrudas, o impacto do símile “duro e triste como uma garrafa sobre a mesa”, a irrupção lírica de um episódio bíblico deslocado para a zona boêmia. E, além disso, a gente vai encontrando, ao longo de sua obra, nomes familiares das fazendas da nossa região sul-mineira: o Favacho, o Angaí, a Traituba. E tais lugares se irmanavam a espaços remotos no tempo, pois a poesia de Dantas os aproximava, com o bafo lírico, bíblico, telúrico e mítico.

Esporadicamente via o poeta em Cruzília, quando ele adentrava a farmácia de meu pai, a caminho para Baependi, Caxambu, para as lides forenses, pois ele era, na região, o advogado mais famoso, de oratória envolvente, em que os termos jurídicos eram por assim dizer encantados pelo sopro da aura da poesia. Mas foi somente em 1973 que tive mesmo grande conversa com Dantas Mota, em Aiuruoca: acompanhado pelo escritor cruziliense Adolfo Maurício Pereira e dois irmãos meus, que tiraram excelentes fotos. Fomos entrevistá-lo em sua casa, no bar e nas imediações do Pico do Papagaio, imponente marco daquela região tomada pelos contrafortes da Mantiqueira. Entre tantas coisas faladas, não me esqueço de que o poeta discorreu sobre a solidão. Alguns meses depois, em fevereiro de 1974, ele deixa o Tempo, como aquela suicida Etelvina, do poema “Notícia”.

(“Agora Etelvina deixará o tempo./ Podem os telefones tilintar./Os telefones e os amantes,/Os caftens e os judeus,/Também as cruéis donas de pensão/ Que sugaram o seu corpo pobre/Sem adereços.// Etelvina era da vida/E bebeu veneno./ Aliás isso é da vida também.”)

Fui ao seu enterro e, diante de seu túmulo, fiz um pacto comigo mesmo que iria estudá-lo, de alguma forma tirá-lo do esquecimento, uma vez que, na Universidade, pouca gente tinha notícia de quem era esse poeta nascido em 1913, no distrito de Carvalhos, e que viveu a vida toda em Aiuruoca, depois de ter feito Direito em Belo Horizonte, e frequentado Rio e São Paulo, tendo feito sólidas amizades com escritores como Mário de Andrade, Sérgio Milliet, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade. Para este itabirano, Dantas é o mais representativo poeta de Minas Gerais, como escreveu em crônica, que hoje faz parte da introdução às poesias completas de Dantas Mota, editadas pela José Olympio, em 1988: “O que eu apreciava nele, acima de tudo (abstração feita de valores intelectuais e morais) era me dar a sensação de estar conversando com alguém que, sob a aparência de Dantas, se chamava Minas Gerais. Era Minas dialogando comigo, com sua fala especial, seu cigarro de palha. (...) Sua ironia e doçura misturadas. Não essa Minas convencional, submissa, concordante, cautelosa... Mas a Minas aberta, revisora, contestatória, que não se conforma com a mesmice dos princípios estabelecidos e expõe a exame nomes, situações, ideias, com infatigável espírito crítico.”

Ao debruçar-me, já como mestrando de literatura da FALE, da UFMG, sobre a poesia de Dantas Mota, chamou-me atenção a recorrência de versos referentes ao Tempo, às escrituras bíblicas, a uma funda tristeza e solidão de um poeta,  que vivia nas montanhas de Minas e se via como uma espécie de profeta menor, como nesta densa passagem do poema “Solar de Juca Dantas”:

“E, à medida que a terra envelhece e morre,
Suas árvores se vão tornando ridicas e maninhas,
Com pássaros empoeirados, sem campina, e sem alfanje.
É um terreno de insetos e de bíblias,
De que saio, profeta menor, Amós digamos,
Buscando a perdida infância com o que me renovar,
E, assim, informar este duro homem que hoje sou,
Sempre sob o signo deste país, denso e misterioso,
Tão rico de facúndias, quão de desertos
E em cujas solidões tanto me excito,
Para buscar, nas reentrâncias dos mesmos Tigres,
Dos mesmos Jordãos e dos mesmo Eufrates,
As razões doutros Tetrarcas e doutras Galileias.”

Sabe-se que Amós foi criador de gado, cultivador de sicômoros, foi um dos profetas menores, que viveu no reino de Judá. Seus temas são a justiça social, a onipotência de Deus e o julgamento divino. Dantas com esse profeta se identificava pois que também era um homem simples, avesso ao orgulho dos poderosos e que, por estar próximo ao campo, tem, por vezes a linguagem franca, rude, chegando, por vezes, ao destempero do palavrão, como vemos na Epístola a Tiradentes:
"Na lista da arrecadação,
constante dos bens pertencentes ao TIRADENTES,
Vê-se que, entre um xairel e várias capeladas de pano azul
forradas de linhagem,
com seus galões de prata e cercadura encarnada,
E um teliz de couro, forrado de baeta amarela,
existiam, solitárias,         DUAS CANGALHAS
Mas essas vocês deixaram,
Vocês deixaram
Para Mim e Para o Brasil,
não é mesmo,
                   SEUS PUTOS?"

Em minha dissertação, agora publicada com o título de A escritura do tempo na poesia de Dantas Mota, busquei levantar as raízes míticas, bíblicas, jurídicas, líricas e telúricas na obra de Dantas, enfatizando a relação entre Tempo e Escritura. Fixo um pouco a atenção nas recorrentes imagens da chuva, como se vê no denso poema “O anjo e o lampião”: ali, O lampião, “cruel abajur”, torna-se a metáfora acesa da memória de um tempo marcado pelo sofrimento, pela pobreza e pela morte. As lembranças tristes, como a ausência culposa do pai em seu vício, são assinaladas pela presença da chuva. Os tristes acontecimentos, inscritos num determinado tempo pessoal do poeta, trazem a “noite chovendo” para seus versos. Destaca-se ainda a metaforização do elemento aquático em “cartilha líquida como um rio”: a cartilha em que o menino fazia suas lições fluiu no tempo, tornou-se depois a escritura do poeta – onde o rio São Francisco fluirá, amadurecido, verberando contra as culpas inscritas num tempo.

O livro que agora vem a lume traz como intenção maior a de poder compartilhar com os amantes da poesia de versos assim, escritos pelo Dantas em suas elegias, entre indignação e esperança:

 

“Então o País das Gerais florescerá,
Que tempo era de florescendo estar.
(….)

 

“País das Gerais, sou teu filho.
Ninguém sabe quando sou boi,
Ninguém sabe quando sou leão.
Na planície me sinto triste,
Na montanha me sinto alegre.”

 

 

Caio Junqueira Maciel é professor de literatura brasileira e escritor. Neste ano pandêmico, publicou o romance Um estranho no Minho e o ensaio A escritura do tempo na poesia de Dantas Mota.

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Paginação:

Nuno Baptista


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