ANO 9 Edição 99 - Dezembro 2020 INÍCIO contactos

Cecília Barreira


Eglantina    

Era torcida.  Manipuladora. Sobretudo com as amizades.

Nunca tivera ninguém. Fraca figura e mau feitio.  Agora que a mãe tinha morrido, voltava-se para a maior amiga, como sempre.

Matava  bichos. Gatos, cães, tudo. Cuidadamente, para nunca ser denunciada.

Era-lhe natural.  Estava-lhe no sangue.

Pelas ruas, longe de casa, ou na aldeia, atraía animais com comida envenenada.

(O que adorava de matanças do porco ou, em criança, no tempo em que se degolavam os galos ou os patos).

Fora professora primária,  mas as crianças  eram-lhe indiferentes.

Em casa, com alento, pegava numa barata ou numa mosca e com a mão sapuda espezinhava-a lentamente.

(Não entendia esses militantes da causa animal).

Na aldeia estava mais à vontade.

Desde tiro aos pombos até qualquer espetáculo de matança.

(Com a Antonieta não tinha sido nada de especial. Apenas a empurrara um pouco. Caíra de um 3º andar).

Quando alguém exibia o gato ou o cão, sentia repugnância. Mas nem levemente se lhes chegava.

Conhecera Adolfo, um sem abrigo que já estivera preso.

(A troco de algum dinheiro, reunia uns quatro homens que de vez em quando espancavam alguém. Sem matar, claro.  Numa grande inocência).

Com Elsa fora interessante.  Namorara uns tempos com o detestável Pedro. Apenas solicitou umas bordoadas para o afastar da namorada.

Ficara tudo composto.

Agora que Elsa não tinha ninguém nos amores era mais fácil usufruir da sua presença. Havia um tabu: era muito dependente emocionalmente dos irmãos e dos sobrinhos.  Com isso, não haveria nada a fazer.

(Quando Eglantina ingeria carne, gostava de ver as partes dos animais no prato).

Herdara dinheiro da tia Noémia. Fora tudo tão natural.

(Ela já muito fragilizada e a dose certa de veneno na sopa)

Depois de uma matança, ficava com fome. E comia com denodo.

Elsa suspeitava do seu lado negro. Mas fingia estudadamente.

Eglantina habituara-se a  nácar e a reflexos de inquietude. Drástica, ia eliminando  o que não lhe interessava. Pequenos prazeres. Fomes. Intervalos.

 

Cecília Barreira é actualmente professora de Cultura Contemporânea na Universidade Nova de Lisboa. Pertence ao CHAM, onde é investigadora de periódicos. Pertence aos grupos de pesquisa AMONET e IRENNE, sobre questões de género. Licenciada em História, com Doutoramento e Agregação em Estudos Portugueses, interessa-se particularmente pela História das Mentalidades. Publicou diversos ensaios e livros de poesia e neste domínio, estreou-se em 1984 com Lua Lenta. Seguiram-se A Sul da Memória (1987), Memórias de uma Deusa do Mar (1995), 15 anos de Alguma Poesia (1999), 7&10 (2003) e Cartas BD (2005), As Opções Ideológicas e o Fenómeno Feminista em Portugal (2009), Do Diário de Lisboa à Revista Maria (2016), Quirino de Jesus e Outros Estudos (2017) e Voando sobre um Ninho Fêmeo (2019).

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SALVADOR DALÍ, 'La persistencia de la memoria', 1931.


Paginação:

Nuno Baptista


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