Marcos Pamplona ; Helena Barbagelata, ilustração



(pintura de Helena Barbagelata, “ENSOMNI (III)”, aguarela sobre tela, 2020 (90x60cm))
o vento infla as cortinas
um flash de sol
engole
o siamês de porcelana azul
sem rumo pelo aço da pia,
formigas ruivas
encontram
a ilha da migalha
o vapor
insinua no vidro do box
o rosto de cristo ou marx
(mas ninguém vê,
não há cristo nem marx)
o pó
repousa
no livro:
dedo sobre lábios
cerrados
o velho cão cego late
sem acordar
a violeta estende
felinamente
o dedo mínimo
uma ponta do cartaz
de dersu uzala
se solta da parede:
desvela
o fóssil de uma sombra
na gaveta entreaberta
o fio de sol escaneia
destinos esquecidos
em trinta e dois envelopes
par avion
a queda do casaco
sopra
o cartucho vazio
do escaravelho
a lareira esfria
sob a máscara de cinzas
um olho rubro
se apaga
um breve tilintar revive
o frenesi de folias
que evaporaram das taças
de cristal
amoxicilina + ácido clavulânico
celular
chesterfield
blue
o delfim
josé cardoso pires
e um lembrete a lápis:
patchwork dos incidentes
in( )significantes
entre as coisas estrangeiras
no fundo calmo da casa
o cão cego e eu
dormimos

NOTA BIOGRÁFICA: Marcos Pamplona é escritor, editor de livros e roteirista. Atualmente vive em Lisboa, onde atua como editor da Kotter Portugal e cronista do jornal Plural