Adriano B. Espíndola Santos


A casa incitava uma sensação irresistível de temor, como se a gravidade fosse mais que uma força aos seus pés. E, por algum motivo desconhecido, não conseguia mudar a ordem das coisas, constantes e aflitivas.
Alterar o ambiente, como sugerira o irmão Júnior, não seria fácil, já que morava há cinquenta e quatro anos ali, desde que nascera, e cuidara, com afinco, dos pais, ambos recém-falecidos. A atmosfera lhe absorvia e, ao mesmo tempo, provocava a confusão dos sentidos.
Não que o irmão tivesse atenção quanto à sua saúde, o bem-estar de Alba. Na verdade, e ela não percebia as incursões sorrateiras, Júnior queria se ver livre do monumento talhado no oco da cidade – a casa milionária –, e, especialmente, embolsar metade da bolada que lhe pertencia de direito.
Na última conversa, um mês após a morte da mãe, Júnior se dedicara a assustar, literalmente, a irmã; que a casa era de seus ancestrais; que eles não queriam arredar o pé dali; que seria melhor evitar transtornos psíquicos, como ela fora acometida no passado, pelas visões recorrentes, que lhe renderam uma grave e longa internação.
Dona Edna, a mãe, no entanto, havia pedido à filha que não se desfizesse da casa; que zelasse pela história da família, pois que “muita história mora aqui”. Por isso, pela natureza passiva, bondosa, Alba não se sentia autorizada a simplesmente desmanchar a herança, que se formara em tempos áureos de muito prazer à arte, à vida; servira, inclusive, de instalação para o maior clube literário da região, capitaneado por seu avô materno, Adalberto Tomás, poeta reconhecido em âmbito internacional.
Para Júnior, que não entendia patavinas de literatura, era um estorvo continuar com os pesos do passado, que não lhe pertencia, e declarava, indiferente: “Já deu no que tinha de dar” – forçando a irmã a se decidir, pois que, do contrário, a abandonaria de vez. Esse era o ponto: abandonar. Sem filhos e parentes próximos, Alba morria de medo de acabar só, desamparada, entregue às desventuras de um devir incerto; e, por isso, sua pele era a própria erupção, supurava com ardentes chagas, como se pretendesse expulsar as dores do corpo: debalde.
Alba pensava não em Júnior, alguém com quem teve grandes embates durante a vida – inclusive, esta fora a razão para as frustrações do pai, que o colocou, segundo a percepção da filha, em estado de inação; talvez a depressão, não detectada –, mas, sim, nos sobrinhos, Rafael e Davi, e na cunhada Paula, amiga de longas datas, coitada, controlada pelo marido ciumento e perverso, tendo-a deixado longe do mercado de trabalho e proibido, até, de que contatasse à irmã – isso Alba sabia pelo nervosismo de Paula, nas evasivas regulares para não a atender.
O quadro e a dúvida cresciam, geométricos, com as dificuldades de divisar saída. Alba sabia, desde nova, que não reunia condições para as tarefas mais comezinhas; chamar um bombeiro hidráulico ou um pedreiro para ajeitar as feridas da casa, que, pelos ferros expostos nas paredes do banheiro e da cozinha, já mostrava estar em avançado processo de deterioração. Encarar as ruas, então, era uma tarefa hercúlea, que lhe rendia preparação; às vezes, por dias carregava-se de inquietação febril, de dor no peito, banhada de suor. E o pior, algo inconciliável a seu ver, o medo de morrer em casa, sem que ninguém desse conta do sucedido.
Ajuizava que o afobamento seria causado por intervenções espirituais, das quais tentara, quando possuía saúde, se desprender. Frequentou várias religiões, ficando decidida, por fim, a não contrariar mais a sua natureza reclusa. Decerto, o maior erro foi não procurar ajuda especializada, visto que a situação se agravara nos últimos anos, sobretudo, com a sucessão de acontecimentos negativos: a perda dos pais, a dificuldade de se aposentar e a necessidade gritante de se abastecer de carinho e de bens básicos para a sobrevivência.
Lembrava-se dos conselhos de uma amiga querida, dos tempos de trabalho na repartição, que poderia ser algum transtorno de personalidade – tendo se chateado e rejeitado, veementemente, a suposta insinuação de loucura. Não obstante, já concluía, a muito custo, estar extremamente frágil para, ao menos, escapar dos arroubos do irmão, que adentrava a casa, sem dia ou hora marcada, com pessoas estranhas, supostamente especuladores imobiliários ou farsantes, dispostos a dissipar sua paz.
Contactou a amiga Carolina, da qual mal recordava o sobrenome, Vermont, depois de várias buscas pela internet. Esta, radiante, se dedicou a contar as notícias boas e, inclusive, a lhe animar, com muito esmero, a compreender o seu estado através de psicoterapia. Carolina providenciou tudo, arcando com os custos do tratamento, realizado com uma psicóloga da família, que cuidava, também, de seu neto autista. No fundo, Carolina suspeitava disso, há tempos.
Alba começou a frequentar o centro voltado ao autismo, sem perceber, de pronto, a ingerência da amiga. Acatou os procedimentos e, com um mês, veio o resultado: Asperger. Apesar de não se achar incluída, porque teria uma ideia distorcida do que vira sobre o autismo, de pessoas que não sabiam articular bem, ou eram robotizadas nos trejeitos, aceitou e entrou de cabeça no mundo que se abria aos seus olhos, até então embaçados pelas circunstâncias experimentadas.
Júnior era cada vez mais ausente, passando, quando muito, para lhe aplicar determinações: faça isso e aquilo. Alba abandonou os estorvos. Não lhe falou sobre a sua condição. Conseguia, aos poucos, liberar-se das atrações infligidas; permitia-se sentir, finalmente, o que seu corpo demandava.
Carolina a amava, como a uma irmã, e deixou que morasse num apartamento que possuía. Alba hesitou, por medo do que pudesse acontecer com a herança, mas, como um milagre, a aposentadoria saiu – e, também, mal sabia que a amiga, antes superintendente do conselho de educação do estado, entregara a papelada junto com o laudo médico, o que tornou, quase automático, o despacho derradeiro da liberação da aposentadoria, pelo qual lutava há anos.
As investidas do irmão diminuíram, pois que vendera o imóvel da família. Fora obrigado, pela justiça, a dividir, rigorosamente, a herança. O montante, que passava dos sete dígitos, a possibilitou resgatar a dignidade e comprar um apartamento ao lado da casa de Carolina.
A relação familiar melhorou. A cunhada Paula soube do resultado. Os sobrinhos a visitavam e voltaram a ser os filhos que sonhara ter.
Com cinquenta e cinco anos, entendia, agora certa, que houve intervenção de seus antepassados, especialmente de seus pais, para que gozasse, tranquila, de sua independência. Resgatara, enfim, a placidez dos melhores dias, sendo amada, mais do que poderia supor.
Cara leitora, não queira deduzir que isto se trata de uma fábula, ou algo do tipo. As histórias podem ter finais amenos. Como declarou o mestre Anton Tchekhov, o escritor deve retratar a realidade, sendo fiel, livre e verossímil; esse é o meu único compromisso.

Adriano B. Espíndola Santos é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance Flor no caos, pela Desconcertos Editora; e em 2020 o livro de contos, Contículos de dores refratárias, pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com a Revista Samizdat. Tem textos publicados em diversas revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir - sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.