ANO 4 Edição 47 - JULHO 2016 INÍCIO contactos

Olinda P. Gil


CONTOS

Grãos de memória

 

As férias eram uma penitência anual. Não gostava de praia, sol ou calor. Gostava de sombras de árvores, de regatos a correr, do cheiro da verdura. Ali, por muito que inspirasse, falhava-lhe o cheiro a maresia. Só lhe cheirava a gente, a tanta gente. O que gostava mesmo era de livros. Mas não os podia trazer porque não cabiam na mala de viagem. Só lhe restava fingir que construía castelos de areia. Enquanto o seu irmãozinho se debruçava na arquitetura ela imaginava histórias para cada grão. Eram histórias do Algarve antigo, histórias de mouras, soldados, piratas e caçadores de baleias.

 

Sem sonhos

 

Estava uma manhã branca quando acordou. A luz difusa entrava pela janela mal fechada. Transparecia um dia nublado. Talvez ainda viesse a chover. A luz que atravessava as nuvens brancas e entrava sem permissão pela janela não incomodava. Deu-lhe um acordar tranquilo, um desentorpecer dos membros sem dor, uma recirculação do sangue sem formigueiro. O corpo aquece aos poucos, e os olhos começavam a distinguir os objetos do quarto que a luz branca dissolvera. “Hoje não sonhei”, pensou. E então reparou que a sua mente estava tão branca como aquela luz que a acordara.

 

A Árvore

 

Resistia no meio de uma mata de eucaliptos plantada por homens, uma árvore das antigas ancestrais, só recordada por nomes de lugares hoje sem significado. À beira de uma pequena lagoa as suas raízes se alimentavam da água calma e límpida que ali ficava sempre que chovia. E as suas raízes eram fortes, e por isso o seu tronco também, e os seus galhos se estendiam em largura e altura, que ostentavam as novas folhas da primavera. Era forte o suficiente para afastar os eucaliptos altos e esguios, como rapazes adolescentes que querem conquistar o mundo. Aquela árvore era velha, mas viçosa. Resistira ali por esquecimento dos homens. Perto dela não conseguia nascer um único eucalipto, nem as suas raízes invadiam as delas para lhe roubarem a preciosa água. Eram como mães, aquela terra e aquela água. E a toda a volta da lagoa nasciam os seus pequenos filhotes. E por aquela árvore já terão passado anos, várias gerações de eucaliptos que renascem sempre que são cortados, anos de seca e anos de chuva, jovens namorados que ali se conheceram e que depois envelheceram.

 

O batedor

 

Não havia muito tempo que descobrira a sua vocação para correr. Já tinha ido a algumas provas de longa distância com classificações satisfatórias para a sua categoria. Sentia-se vocacionado para a corrida, o que não significava que fosse o melhor, ou que tivesse a capacidade de um atleta olímpico já retirado. Foi um dia, ao terminar um dos treinos. Apetecia-lhe continuar a correr, por entre encruzilhadas desconhecidas e caminhos sem destino à vista. No final da ciclovia onde costumava treinar encontrava-se um cavalo, possivelmente perdido do seu dono e da sua cavalariça. O animal abanou a crina, como se lhe contasse sobre a liberdade de galopar. Se o animal tivesse corrido, ter-lhe-ia apetecido persegui-lo. Então percebeu que a sua vocação não tinha lugar no mundo moderno. Deveria ser batedor, ou caçador de mamutes. Persegui-los durante dias e quilómetros até à exaustão.

 

A rainha das mulheres selvagens

 

Ele encantou-se com ela, a garota selvagem no meio das garotas fidalgas. Todas elas se tinham aprumado para receber o príncipe com galanteios. Os seus corpos, vestidos e penteados eram perfeitos. Cada uma era mais bela do que a outra, mas os seus olhos iriam bater nos da garota selvagem. Ela também se tinha arranjado, mas do modo que era seu, pois a ocasião era solene. O vestido era andrajoso, não estava maquilhada, e o seu cabelo mantinha-se solto, apesar de penteado. O seu cabelo era lindo, parecia a crina de um cavalo, o que fez logo a sua imaginação delirar, com uma imagem das suas mãos agarradas àquele cabelo, e do seu corpo sobre o dela. Ela não o foi cumprimentar. Foram as outras que o fizeram.

 

Ele galanteou uma a uma, como era a sua obrigação, e com elas dançou. Mas durante toda a noite olhou para a garota selvagem, que sorria como nenhuma daquelas poderia sequer sorrir. O sorriso era sincero e rasgado, sem temer o franzir das bochechas e dos olhos, sem esconder os dentes desalinhados. Já tinha ouvido falar das selvagens, dos seus corpos livres que podiam mover-se como queriam. Podiam até não ser tão graciosos como os das donzelas cuidadas, que muitas das vezes até os apertavam em vestidos para parecerem mais elegantes do que realmente eram. Sabia que aquelas garotas se podiam dobrar, sentar de pernas cruzadas, abaixar-se de pernas dobradas, arquear as costas só pelo prazer de as ouvir estalar.

 

- Concedeis-me a honra de uma dança? – Pediu-lhe ele, no final da noite, depois de dançar com todas as outras.
- Não danço estas danças. Só danço as danças da lua.
- Nua? – Atreveu-se ele.
- Se a noite não estiver fria. – Mas a noite arrepiava. Mesmo assim foram para o jardim do castelo dançar uma dança infantil que consistia em rodopiar o corpo até que não aguentassem mais as tonturas, e rir muito.
- Ah tanto tempo que não me divertia tanto. – Confessou ele. E depois fizeram amor debaixo de uma árvore. E ele pode prender as suas mãos nos seus cabelos de crina de cavalo, mas ela não deixou que ele colocasse o seu corpo sobre o dela. Preferiu o contrário, para que pudesse arquear as costas à sua vontade, e esticar os seus braços.
- Fica comigo no palácio. Sou o príncipe, caso com quem eu quiser.
- E eu sou uma amazona, a rainha das mulheres selvagens. Estou apenas de viagem. Perdi-me nos teus olhos, mas eles não entraram no meu coração. As rainhas selvagens não querem homens galantes nem fortunas. Muito menos palácios que parecem prisões. As rainhas selvagens não querem donos, mas também não querem serventes. As rainhas selvagens querem um companheiro que durma com elas uma noite numa praia selvagem. Que as acompanhe a subir montanhas e a explorar os oceanos. As rainhas selvagens não querem um homem que lhes plante um filho na barriga, mas que o faça aparecer como que por magia.

 

No outro dia de manhã a rainha das mulheres selvagens partiu montada no seu cavalo alado para terras estrangeiras. E o príncipe nunca mais ouviu falar dela.

 

Guerra

 

Sabia que era guerra, apesar de haver muitos anos que o seu povo se dizia em paz. Mas a paz era para os senhores, não para o povo. O povo continuava a trabalhar de sol a sol e a passar fome. Os senhores continuavam de barriga cheia e a gastar tempo a rezar aos deuses que os acolhiam. A guerra continuava em todas as casas. Na luta pela saúde e pela alimentação. Na resistência diária às acusações e pancadas saídas das mãos dos homens. Nas mãos do seu pai, na voz dos seus irmãos. Dos vizinhos, e claro, dos senhores. Porque as roupas finas não os tornavam diferentes de ninguém.

 

Naquele final de tarde foram trinta. Vinham bêbedos e irritados da vida pobre que tinham. Apanharam-na, prenderam-na e fizeram dela o que quiseram. Um por um.

 

Ficou a morrer de si estendida na rua. Morreria o seu corpo também pelo sangue esvaído. E no dia  seguinte a culpa seria sua, porque estava na rua perto da tasca ao final do dia.

 

Tens tempo para isso?

 

Esperava que o relógio batesse as nove e meia da noite, a casa estivesse arrumada e o bebé a dormir. Quantas vezes lhe diziam: "Tens tempo para isso?" "Porque o fazes se não ganhas dinheiro?" "Andas a perder tempo com isso com tanta coisa que tens para fazer em casa." E ela fazia ouvidos moucos, muitas vezes com amargura porque as palavras vinham de quem mais amava. Mas as quartas à noite mantinham-se sagradas, como há já algum tempo. Porque era nesse momento em que sentia realmente plena, em que se sentia ela própria. Quando os cânticos do côro passavam para a sua voz de soprano, sentia-se realizada e em êxtase. Não precisava de ser outra senão ela própria. Não precisava de fazer outra coisa que não fosse sentir as vibrações do canto em cada uma das suas células. Sim, tinha de ter tempo para isso. Porque naquele momento ela não era a mãe, nem a esposa, nem a empregada de escritório. Ela era apenas música.

 

"Mais valia descansares", continuavam a dizer-lhe. E ela encolhia os ombros, não querendo responder nem encontrar conflitos. Não era muitas vezes que alguém a compreendia, e isso vinha mesmo de quem não a conhecia. De alguém a carregar um saco com parafusos, que sabia ser para alguma bricolage. Ou de alguém atarefado a tomar notas de um livro que sabia não ser de estudo de alguma matéria escolar. Sorriam entre eles, quando lhe viam as pautas debaixo do braço, e o seu dia seguia cheio, tão cheio, como em todas aquelas noites em que podia continuar a cantar.

 

25 de Abril

 

Naquele dia de agitação, instaurava-se em Lisboa uma revolução. Os militares apelaram à calma, mas o povo saíu à rua sedento de fazer história. Ela espreitava por detrás das esquinas sem que alguém a visse e sorria perante a capacidade das pessoas de se unirem pela sua liberdade.

 

Foi quando viu uma mulher subir a rua com cravos no regaço. Uma sequência de acasos colocaram a mulher naquela rua com as flores, a falar com um dos militares.

 

Então soprou-lhe ao ouvido e ficou feliz a observar o resultado. A mulher ofereceu um cravo ao soldado com quem falava, e esse soldado colocou-o no cano das espingardas. As armas não iriam disparar. E o resto repetiu-se enquanto houve cravos no regaço da mulher.

 

 

Olinda Pina Gil é licenciada em Línguas e Literaturas Modernas e mestre em Ensino do Português e das Línguas Clássicas.
Começou a escrever no “DNJovem – Diário de Notícias” em 1999 e desde aí que continua a colaborar em diversas publicações e colectâneas. Foi 3º prémio do concurso literário "Lisboa à Letra" em 2004, na categoria de prosa.
Editou, a título independente, em 2013 “Contos Breves”, e, pela Coolbooks - Porto Editora, “Sudoeste” e “Sobreviventes”, em 2014 e 2015.
Escreve no blog www.olindapgil.blogspot.com

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